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Ensaio – Itamar Assumpção 1999

Artista participou do programa na TV Cultura; relembre!

Fonte: YouTube Canal Ensaio TV Cultura

Bate-papo #ItamarAssumpção – Isso não vai ficar assim

Saiba como foi o bate-papo em tributo ao cantor e compositor Itamar Assumpção. Conduzido pelo jornalista Anderson Falcão, do Portal EBC, o hangout contou com a participação do músico Arrigo Barnabé e da cantora Alzira E.

Fonte: Portal EBC

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Foto: Marcos Penteado/1990

Com quantos nãos se faz um som – Parte 0/26

por Ricardo Tacioli

A notícia tocou mais que sua música e correu rápida. Itamar havia morrido.

Talvez já estivesse cansado. A gente nunca sabe. Hospitais, remédios e médicos cansam qualquer um. Mas o discurso articulado, cheio de braços e artérias, seguia contundente. Chicoteava o pop, as gravadoras, os vizinhos intolerantes e as rádios monogâmicas. O vigor criativo e a artilharia verbal o distinguiam de seus pares, novos e veteranos.

Três semanas depois, o Gafieiras publica duas entrevistas que não estavam nos planos. Nos originais, pelo menos. Uma data de 1998, originalmente revelada na revista universitária A Nível D. Ali, o nosso destemido e angular fotógrafo ainda portava uma 35 milímetros, automática. A outra foi realizada em 2001, quando o grupo que formaria o Gafieiras articulava o making of do disco Show (Som Livre), de Ná Ozzetti. Conversar com parceiros e amigos da ex-Rumo, essas coisas. E Itamar estava no caminho. Max Eluard e Rogério Trentini foram até sua casa, onde falaram de futebol, música e de quase tudo que nos cerca. E de Ná Ozzetti.

O terceiro e último tempo dessa entrevista extra ganhou forma graças a gentileza da fotógrafa Carolina Andrade, que cedeu os registros coloridos e em preto-e-branco que fez durante um show no Teatro do SESI/FIESP, em 2002.

Agora, sem Itamar, resta-nos redescobri-lo. Não pelo compromisso moral ou pelo culto aos símbolos que estão fora do mercado. Resta-nos redescobri-lo como uma interrogativa, como a necessidade de se questionar, principalmente os ídolos. Daí nascem o artista e o caminho que se deve seguir.

Na casa da Alzira – Parte 1/26

09-alzira-itamar-espaco_raisa-outubro_89Faz um tempo. Cinco anos. Estava terminando o curso de Ciências Sociais na USP, era o 1º semestre de 1998, e editava com um grupo de amigos uma revista chamada A Nível D. Era o número 2 e o tema, Brasilidade. Pra falar disso, sem pegadas acadêmicas, utilizamos ficção, fotografia, ilustrações, poemas, crônicas e uma entrevista. Difícil lembrar o porquê do Itamar ter sido o escolhido para ser entrevistado por nós. Talvez eu tenha sugerido por ser fã e achar que tinha muito a ver. Talvez a Daniela Pinheiro, a Dani Morena, tenha conseguido e eu achei bom demais. Provavelmente os dois. Ou alguma outra coisa.

Só sei que chegamos, apenas nós dois, no local marcado em Pinheiros pela manhã. Era numa vila e a casa era de Alzira Espíndola (parceira e amiga de Itamar). Ele estava passando lá uns tempos porque o estúdio onde estava gravando, ou mixando, o Pretobrás era perto e não precisava ficar indo e voltando para a Penha todo santo dia. Faz tempo.

E o medo? Nunca tinha entrevistado ninguém e o Itamar parecia assunto complicado demais para os meus ouvidos universitários, apesar de conhecer toda sua discografia até então e de já ter visto um show sensacional, só voz e violão, no Café Piu Piu. Não sabia o que perguntar e não quis empunhar minha pobre câmera pequena e automática por vergonha. Daniela não quis nem saber. Pegou a câmera e foi perguntando. Ficamos lá umas duas horas e não perguntamos muito. Ele ia falando e lembrando, ressentido e ativo. Ouvimos.

Parecia um cara difícil no trato, mais pelos perrengues de ser um “maldito” do que por de fato sê-lo. Continuei ouvindo e continuo. Queria ouvir mais. Quis muito ser amigo dele. Sei que, pelo menos, seus discos continuarão sendo meus amigos. Bom que essas coisas são para sempre. (Dafne Sampaio)

O passo que resolvi dar foi o da independência artística – Parte 2/26

1294728824_itamarItamar Assumpção – Na música, na linha da evolução da música brasileira, que foi lá… que a última história sobre isso daí foi o tropicalismo, então, considerou-se que de lá pra cá nada mais aconteceu, isso já deixou de existir há muito tempo, porque a música do anos 80 que surgiu em São Paulo, o Beleléu e Clara Crocodilo são divisores de águas no sentido, na nova forma de compor. Dois compositores acrescentando algo. O Arrigo… ele traz o que não tinha, eu não conheço o atonalismo na música brasileira tradicional, essa coisa de europeus. Arrigo Barnabé, descendente de italianos, é isso que é Brasil. 500 anos, próximo. Então, eu sou descendente de escravos, sou próximo, tenho quase 50 anos, por pouco eu não tô no Pelourinho ou qualquer coisa do tipo. Então, assim, depois do Cartola, do Milton, eu tenho que dar um passo, e o passo que eu resolvi dar foi na independência artística, esse foi o passo que eu resolvi dar, e por isso então que eu gravei o Beleléu.

O Arrigo é um compositor erudito. Qual é o problema? – Parte 3/26

a32e4497dd9aa71f59f4de76fb772073ab0afc28Itamar – Eu tocava baixo com o Arrigo na banda Sabor de Veneno, e fazia arranjos de base com o irmão dele. Então foi uma coisa que eu me preocupei em aprender, porque um descendente de escravos não vai saber o que é serialismo, mas também um europeu não vai saber dizer no pé. Tem uma confusão, o Arrigo não é um compositor popular, não tem como ser, porque os códigos são outros. O Arrigo é um compositor erudito, como o Gismonti é, mas, qual é o problema? O problema é querer enfiar lá onde ele não está, é querer que ele seja um Adoniran. Como? [canta] “Não posso ficar nem mais um minuto com você, sinto muito amor…”, pra sempre vai ser assim, sempre, pode soltar bomba nuclear, acabar o mundo, sempre vai ser cantado isso. O que eu sei é… [canta] “Eu daria tudo o que tivesse, pra voltar aos dias de criança…”, você começa a cantar isso, todo mundo começa a cantar… [canta] “Laranja madura na beira da estrada, tá bichada, zé…”, isso é compositor popular, isso é descendente de escravos. Brasileiro. Então, essa é minha escola, é por isso que eu não tô na Europa. Aqui é a minha terra, só se quiser me exilar e tal, e eu não vou. Eu tenho um público, e que a vida toda – eu meio que esqueço do resto do mundo – trabalho pra esse público. Aonde ele está? Sei lá, eu vou pra Alemanha, ele tá lá, e pelo Brasil afora também.

A única alternativa que surgiu foi essa música de SP – Parte 4/26

itamarItamar – Então, acho que esse tempo de 18 anos em que gravei o Beleléu, que tem também o Clara Crocodilo, deu pra ver que a música brasileira ficou um pouco mais complicada do já era. A cultura musical é barra pesada pra você que chega como compositor. Não é gracinha, não dá pra segurar com gracinha. A História não está perguntando de gracinha. Olha, pra eu dizer a que vim tive que desenvolver minha linguagem de compositor junto com a de cantor, arranjador e músico. Habilidades, você tem que ter habilidades. O Cartola podia tocar um violão razoável, o Nelson Cavaquinho também, mas o Gil acabou com isso, o João Bosco… Técnica. E é uma coisa muito brasileira, o violão é uma coisa muito brasileira, os compositores populares tocam violão. É um instrumento que é popular no Brasil. E eu toco um violão de compositor em que se desenvolve um jeito de tocar. É aí que está a barra, porque você ouve o Tim Maia… olha aí o Tim Maia, o Jorge Ben, o Gil, o cacete a quatro, não tem como não identificar, e o Itamar Assumpção é o Itamar Assumpção, não tem alternativa. Se eu deixar vacilar, não sou nada, se alguém falar, mas quem será esse aí? Perguntou, já não acontece mais nada. É essa coisa que é complicada. Mas eu vejo claramente assim, que o meu trabalho e o do Arrigo, nos anos 80, tem essa radicalidade de uma proposta de banda e de revelação de músicos, e eu acho que a única alternativa que surgiu pós-tropicalismo foi essa música de São Paulo. Isso pra mim está claro. Se essa música não está no mercado é outra conversa.

O pop não tem compromisso com Adoniran, com Ataulfo – Parte 5/26

10287437Itamar – É que de repente ficou mais simples falar assim, o Itamar é maldito, só porque eu não quero fazer um disco daquela forma tradicional. Se for assim, tá certo, mas dizer que a minha obra é maldita está errado. Se a minha obra, que faz parte de uma tradição criativa, é maldita, jogou Caetano, Gil, Chico, Milton, aí também. Porque não vai jogar Itamar, Macalé, Mautner, o Luiz Melodia, e deixar todos os demais fora, porque esses artistas fazem parte de uma mesma constelação. Não existe Tom Jobim maior que Ataulfo, como? Ataulfo maior que Luiz Gonzaga? Isso não existe, parece que tem um maior. Maior que Chico, maior que eu, quem? Esse pessoal do pop não tem nenhum compromisso com o Adoniran, com o Ataulfo, com o Arrigo. Não tem compromisso com a história, não conhecem nada, vão falar bobagens, uma cultura sobre si mesmo, sei lá, só ficam falando em milhões de discos, números. Eu nunca quis vender um milhão de discos a qualquer preço, ou entrar no mercado a qualquer preço. A Clementina de Jesus ficou trabalhando de doméstica até os 60 anos, depois foi cantar. O Cartola ficou 25 anos lavando carros. Agora estou há 25 anos em São Paulo, mas não lavando carros nem como empregada doméstica. Resolvi fazer música, independentemente do mercado. Não interessa se o mercado está agora pro sertanejo, ou então pro pagode, ou pop. Quero dizer, a toda hora rola uma história.

Não sou advogado, médico ou pedreiro. Sou músico! – Parte 6/26

2a64e12117260cf5f438341ed7261b63e13854f5Itamar – A cultura é muito difícil, principalmente a brasileira, acho que é uma complicação da cultura. Cadê raiz? Não tem raiz. Podem falar um monte de bobagens, por exemplo, você pode falar pra mim, seu negro, isso e aquilo, e eu olho pra você e falo, “Ah, você é um quibe, vai lá pra sua terra, pro Iraque”. Falam isso na França, isso é racismo, racismo. No Brasil é brincadeira. Agora lá é sério. Como vão falar pra mim que sou africano, mas eles vão dançar, porque eu não sou africano, mas eles vão ficar falando isso, você é africano, dão uma geral no passaporte, “pow, crash, bang, ah, brasileiro, porra, cacete”. Aqui, você vai ali, naquele prédio, tem o porteiro, o porteiro olha pra mim, estranhou? Mas quem é o porteiro? O porteiro ou é um nordestino ou é… um nordestino. Agora, esse nordestino de onde veio? Quantas misturas terá essa figura? Como ele pode ser racista? Como? Ele não tem a menor possibilidade, porque eu vi um francês, aquele brancão dos óio azul, louro, xingando um alemão, brancão dos óio azul, louro, e vice-versa. Mas o que está acontecendo? Não tem nenhum preto aqui no meio? É que o pessoal gosta de falar bobagens. Tem uma complicação cultural aqui muito grande, em que resolvi ficar na minha. Eu sobrevivo com o que a minha cultura me deu, ou seja, a música. Eu não sou advogado, não sou médico, nem pedreiro, não sou professor. Eu sou músico, herança dos negros. Oras, e você acha que eu vou brincar com isso. Se o Milton não brinca, eu vou brincar?

Ficava lá no período de férias, jogando truco e malha – Parte 7/26

Itamar – Eu nasci em Tietê, 1950, fiquei lá até os 14 anos, daí fui pro Paraná, Arapongas, e fiquei até os 23 anos, quando me deram um pé na bunda, chega dessa vida boa do interior, vá procurar sua turma. Eu cresci bem, cresci muito bem assim, ia pra roça no Paraná, eu gostava de ficar uma temporada na fazenda, jogando bola. Havia aquelas famílias, uns crioulos que as fazendas contratavam, porque esses caras jogavam bola, tinham mais facilidade, e eu ia junto, ficava lá no período de férias, jogando truco, malha… E sempre acordei muito cedo, quatro horas da manhã eu já estava ligado. E essas ondas, sempre gostei disso.

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Fui pra Portuguesa de Desportos. Era centroavante – Parte 8/26

Itamar – Eu fiz teatro lá em Londrina, Paraná. Era um grupo que tinha ótimos atores e montava Arena conta Zumbi, Arena conta Tiradentes, remontava essas coisas lá no Paraná. Eu estava no colégio. Com meu irmão eu fiz uma peça, assim… a gente gostava da coisa, ele escreveu e saiu bem. Meu irmão é ator, minha irmã também, meus dois irmãos são, eu… bom. Tem uma complicação aí, eu explico. Eu jogava futebol, jogava bem bola, gostava muito, não tava ligado no teatro mesmo. E vim parar aqui também, achando que ia jogar futebol. Uma hora eu fiz umas confusões, assim… troquei as bolas. Então tive que queimar umas etapas, me decepcionei com umas coisas pra poder chegar na música. A música foi a última coisa que me bateu. Ela não veio dizendo, “Olha eu aqui”, ela estava escondida não sei onde. Tive essa aventura com o futebol, fui pra Portuguesa de Desportos, fiquei no alojamento, chovia. Aí fui olhando, pensando, daí foi batendo uma coisa de tempo assim, o tempo, eu com 18 anos, pensando que, com 30 acaba. Aí aquilo me deu um baque. Era bem assim, a velocidade da coisa, do corpo responder rápido aquilo, e eu não via isso pra mim. As coisas muito devagar, sempre muito devagar. Então entrei nesse choque. Fui na tesouraria, “Olha, quero meu dinheiro!”. Peguei. Fui para a rodoviária e voltei pra Arapongas. Eu era centroavante, tinha começado como médio-volante, porque no time que eu jogava, meu irmão era ponta-esquerda, e era ambidestro, uma facilidade pra ele, porque o marcador nunca sabia o que ia acontecer. Isso era muito bom pra nós tabelarmos. Fazíamos muitos gols. Ele cruzava muito bem e eu fazia gol de cabeça… Era um timinho de Arapongas chamado Corinthians. O barbeiro era o dono… Eu era muito indisciplinado, gostava de driblar até perder a bola. Aí ele me xingava, eu xingava ele, ele me tirava, eu ficava puto pra cacete. Mas aí levava um castigo, porque você ficava a semana inteira esperando pra jogar e depois jogava 15 minutos. Se pisasse na bola, ele tirava. Era ruim pra cacete.

Quando você se depara comigo, você se depara com surpresa – Parte 9/26

itamar_2Itamar – No teatro, tem uma coisa assim: os atores falam, com relação a televisão e o mercado, que eles preferem o teatro como exercício da atuação. A televisão é um barato, mas não dá o aqui e agora do negócio. Pra mim, o que acontece, é que eu não tenho esse problema, não sou colocado fora do meu universo nunca. Sempre estou no meu universo. Pra mim é ao vivo, tudo acontece ali. É aí que está o teatro pra mim na música. É assim que eu levo o teatro. É como o jazz, como a linguagem musical do jazz, faz na hora, improvisa, leva até as últimas conseqüências o agora, amanhã vai ser outra coisa. Então, na minha música há esse teatro, onde não existe ensaio. Eu não ensaio. Ensaio até onde tenho que ensaiar pro show, mas a partir de um determinado momento, é o momento que vai dizer. Posso, de repente, estar no teatro Sérgio Cardoso, aí tô no Supremo Musical, no Ibirapuera. Então, é o lugar que vai me dizer. É aí que existe… Quando você está em contato com as pessoas, a química é essa. Então quando você se depara comigo, você se depara com surpresa. Eu tô sempre arrumando alguma coisa que alguém não sabe.

O Ataulfo veio em meu socorro – Parte 10/26

4389599541_6c08b9d787_zItamar – Quando fui fazer o Ataulfo, tinha acabado de fazer o Bicho de 7 cabeças, em dois volumes com a banda Orquídeas, um grupo de mulheres e tal. E ali, como compositor, vi que eu estava já num estágio de avançar e ficar incompreensível. Eu tava correndo esse risco ali. Então, parar por parar é uma coisa também inconcebível. Não tenho esse dom de parar, “Ah, agora vou parar e ficar ouvindo passarinhos”. O Ataulfo veio em meu socorro. Eu pude voltar a uma atividade que eu não fazia há muito tempo, de pegar o violão e tirar umas músicas, esse exercício de ouvido que eu gosto, que tenho, essa formação. Eu também refleti muito sobre um show que fiz em Cachoeira de São Fêlix, interior da Bahia, em que fui com a Tetê Espíndola. Ela era super conhecida lá, e eu super desconhecido. Aí falei pra ela, “Vou abrir o show, vou cantar não-sei-o-quê”. Eu estava com o repertório do Bicho de 7 cabeças na cabeça. Aí vi aquele povo, naquele lugar, e resolvi cantar “Na cadência do samba” de cara. Comecei e todo mundo começou a cantar. Foi ali que comecei a refletir sobre o Ataulfo, sobre a função do compositor na cultura mesmo. É um problema meu trabalhar com esse universo de canções onde existe essa formula mágica, que já chegou a bomba atômica, e o mercado não tem como chegar a isso. Quem conhece o Ataulfo, o recriar seria isso, ouve o Ataulfo sem aquele susto de… Ei, mas mudou o negócio, e ao mesmo tempo não garante que não tenha mudado. Eu não deixo brechas nos meus arranjos para dizerem, “Porra, mas mudou o negócio!”. Você vai ouvir um monte de coisas, mas seu ouvido vai estar ali, vai estar ligado no que tem que estar. Isso que é recriar, é você criar e deixar essa linha, que foi o Ataulfo quem criou, onde não é Itamar. Agora, voltei com o Pretobrás, já com esse aprendizado de canções. Eu tô mais pop, bem pop, é um universo que eu pretendo brincar um pouco.

O que vale é o sentimento do poeta que fez da sua vida sua obra – Parte 11/26

itamar4Itamar – O que eu quero dizer é que Pretobrás é a liberdade do compositor depois de 18 anos do primeiro disco, é a liberdade de escolha, uma liberdade de vida. Olhe bem, tem essa música que gravei pra esse disco, “Dor elegante”, letra do Paulo Leminski, é uma música que fala da dor da cirrose. Eu a recebi de uma cara que morreu de cirrose e esse cara é um poeta. Então, pra mim o que vale é o sentimento do poeta que fez da sua vida sua obra. Artista pra mim é isso, não é ficar ali com o BMW dando tchauzinho. Posso até ter um BMW e sair ralando por aí dando tchauzinho pras mina também, mas fazer isso profissão é meio complicado. E o Paulo, com esse humor que lhe é peculiar, simplesmente no meio dessa dor terrível, no meio de uma das crises fez esse poema e me deu… “O homem com uma dor é muito mais elegante, caminha assim de lado, como se chegasse atrasado e andasse mais adiante…” Então, acho que esse sentimento tem que ser interpretado por quem entende disso. Seria o ideal que isso fosse sucesso popular, que o povo cantasse seu verdadeiro poeta. Não é político, não é letrista. É um poeta.

Não aguento ficar olhando as belezas do 1º Mundo – Parte 12/26

Itamar-Assumpção-02-foto-Vange-MillietItamar – O humano e o profissional estão misturados, principalmente no Brasil. Eu tô aqui dormindo na casa de uma amiga, porque é mais perto do estúdio. Não tenho que vir da Penha todo dia e voltar. É uma forma humana pra fazer, que nem meu primeiro disco, o Beleléu, que foi feito assim. Mas é um jeito que eu acho que a gente encontra pra não pegar um avião e cair fora. O que vou fazer fora do Brasil, a não ser ganhar dinheiro? Quero dizer, a minha música está aqui. Posso ficar em Paris, é lindo, mas eu não aguento isso, ficar olhando as belezas do Primeiro Mundo com tanta coisa pra fazer aqui. É muita música. Tudo em português, é toda uma conversa com o Brasil sobre cultura, então seria um exílio pra mim ir embora para sobreviver. Claro, se o bicho pegar de verdade eu caio fora, mas eu vou me segurando assim com os amigos. E lá na Alemanha, no primeiro show, eles falaram muito. Fui umas duas vezes, mas no fim do show foram pedir discos. Aí, depois de um bom tempo, me disseram que eu tinha sido aceito no país mais difícil do mundo. Os caras queriam conversar, me perguntavam a origem das músicas. Pra mim aquela era uma conversa estranha, mas eles me falaram que era uma coisa do sentimento, que tinha um sentimento com o texto, uma fórmula aparentemente simples, ouvir o texto como uma coisa que flui, que não perturba. Aí vi que eu podia me entender como brasileiro, como essa matéria-prima do sentimento. É disso que se trata, é a sobrevivência do sentimento aqui também. É isso que a minha música trata, a sobrevivência não somente física, porque aqui é o lugar de cada um sobreviver como pode, mas essa sobrevivência artística, a resistência contra a diluição. E isso não é somente Itamar. Eu vejo também o Paulinho da Viola, o Jards Macalé, o Mautner, o Hermeto Pascoal. Essa é a minha praia. A modernidade pra mim é isso. É o Itamar Assumpção tocando com o Hermeto Pascoal, ou então tocar Arrigo Barnabé como eu toco Ataulfo. Eu tive que entender isso, faz parte do mesmo campo de atuação. Agora, mais importante que essa entrevista, pra mim, são os três volumes do Pretobrás. Falar não rola, é época de mostrar coisas.

>> entrevista realizada em maio de 1998 e publicada originalmente na seção “Água no feijão que chegou mais um”, da revista universitária A Nível D, com o título Itamar Assumpção, por que a gente não pensou nisso antes?

Domador de parábolas – Parte 13/26

Do metrô saltamos na Penha, na Penha onde passei os primeiros anos da minha vida. Nada lembro, nada trago da Penha, mas nesse dia encontrei algo por lá.

Nego Dito, descomplicando Arrigo, sambando quadrado na Alemanha, verdades esfumaçadas na sala apertada de retratos.

Estávamos fazendo um making of do disco Show, de Ná Ozzetti, colhendo depoimentos de músicos que trabalharam com ela e fomos ouvir Itamar.

Depois de 20 dias na UTI estava ansioso.

Discurso difícil de domar, olhos difíceis de fitar, por detrás das lentes escuras inscreviam parábolas e mais parábolas no espaço entre o teto e minha cabeça. As palavras iam saindo por entre seus dentes cerrados e falar de Ná era quase acaso, mas sempre muito bem encaixado.

Assim conheci Itamar, Nego Dito, Pretobrás ou palmeira do deserto, olhando mais de perto.

Numa noite dessas, uma da manhã, me liga o Xis dizendo que ele se foi… (Max Eluard)

“Olha, comecei a compor. Que cê acha?”, disse a Ná – Parte 14/26

                                                                                                    
NaOzzetti_680_10Max Eluard – Itamar, quem é a Ná Ozzetti pra você?

Itamar Assumpção – É aquela artista, assim, como a Virgínia Rosa também, que começou de uma forma independente da grande mídia. A Ná com seu grupo, que fez belos trabalhos, o Rumo, um pessoal desenvolvido musicalmente. Mas eu acho que a minha geração – Rumo, Arrigo – é a geração que mais pôde desenvolver uma linguagem música no Brasil ultimamente… Ou é isso ou é mercado. Então, como é possível dentro de uma pressão mercadológica desenvolver uma linguagem? Eu desde o Beleléu disse, “Olha, vou ficar fora disso que meu negócio é desenvolver minha linguagem”. Pelo caminho, depois dos trabalhos com o Rumo, a Ná partiu pro seu caminho-solo, tal. Muito tempo depois, num belo dia, ela me mandou uma fita com duas músicas e falou, “Olha, comecei a compor. Que cê acha?”. Porque é diferente você cantar e compor, é uma outra coisa…

Você tem que ter a sua linguagem como compositor – Parte 15/26

Itamar – Aí ela viu esse lado e me perguntou. Minha resposta foi… Vieram uma música e uma melodia, então somente escrevi uma letra. Então, minha resposta foi essa, uma parceria já de cara. Então, a gente é… A gente se uniu mesmo naquele momento. A gente, claro, um admirando o outro o tempo todo, cada um com o seu tabalho. Isso pra mim quer dizer o seguinte: dois artistas que se desenvolveram e com a liberdade suficiente para terem parcerias. Eu posso tanto ter uma parceria com Paulo Leminski, que é um poeta, como como o Macalé, como o Melodia, como com o Hermeto. Essa liberdade de criar com o outro. E a Ná foi desenvolvendo isso. Você tem que ter a sua linguagem como compositor. Você vai ouvir Tim Maia, você vai ouvir Jorge Ben, todos tem a sua característica. No Brasil, ou você imita ou você cria uma linguagem. E como o Brasil é assim, um ninho de talentos… Por exemplo, antes de mim – tenho 51 anos – Clementina, Paulinho da Viola, mesmo Hermeto, Tom Zé; é Lupicínio, é Cartola, é Luiz Gonzaga, Caetano, Gil, Milton Nascimento, Luiz Vieira e Arrigo. A diversidade é muita.

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Alguém criou uma melodia eterna – Parte 16/26

Itamar – Aí chegou o momento que, como compositor, eu teria necessidade de olhar pra esse lado especificamente. E o que me deu um toque foi um show que fiz com a Tetê Espíndola lá no meio da Bahia, Cachoeira de São Félix, onde todos conheciam a Tetê, e eu, um anônimo por excelência, com repertório totalmente inusitado. Aí, bom, o que fazer aqui? Sentei. “Vou abrir seu show, Tetê”. Sentei, peguei o violão, comecei a cantar, “Sei que vou morrer, não sei o dia”, aí todo mundo começou a cantar. Comecei a acompanhar e prestar atenção numa melodia eterna… Alguém criou uma melodia eterna que independe de saber quem. Então, Ataulfo é isso, essa coisa do compositor popular.

É bobagem falar que o Arrigo é complicado 17/26

Itamar – Tive uma época em que eu era tão vinculado ao Arrigo que o pessoal achava que era é igual, né? Eu tenho que entender o Arrigo como músico, como arranjador, como intérprete, pra cantar aquela música que é atonal. É outro papo. Assim, o meu natural é o batuque. Os pretos trouxeram e deixaram aí com os caras, então isso é o meu natural, o samba. Isso aí é coisa que me é natural. O atonalismo, não! Nem pra nós, brasileiros. Mas eu acho que o Arrigo é isso. Ele traz algo para a música brasileira que não existia antes. Então pra mim é bobagem falar que o Arrigo é complicado, é chato… É burrice! Porque você tem que entender mesmo, não tem conversa. Eu sou outra coisa, você não precisa ler minhas músicas como músico. Mas do Arrigo, você vai ter que ler, e muito bem. Quero dizer, há esses dois… Então, há aqueles músicos tipo Bocato, que tanto faz ler como não ler… Aquele brasileiro, brasileiro, essa escola que os caras malham pra caramba, pra você entender o mínimo da coisa… Então, essa coisa do compositor, eu fiquei, isso em noventa e… Depois que eu fiz o trabalho com as Orquídeas, montei um grupo de mulheres, em 92, gravei dois discos com elas, que é minha banda atual, que pretendo continuar por um bom tempo, as Orquídeas, montada em 92. E hoje uma está com o Chico César, outra com Zeca Baleiro, por aí afora. Eu acho lindo porque estão tocando muito bem…

Vou deixar o Itamarzinho um pouco e vou estudar – Parte 18/26

Itamar – O que entendi quando comecei a compor é que não adianta você pegar o violão e fazer uma musiquinha. No Brasil, pra que vou fazer isso? Pego Lupicinio e canto. Fazer musiquinha? Não vai dar certo, essa coisa que não tem jeito, você é medíocre. E não vem com história “O mercado aceita tudo”, porque a mediocridade não vai se transformar em outra coisa, só porque o mercado aceita tudo. O medíocre continua. Só que acontece que se tem uma opção hoje pelo medíocre. Então, os que querem desenvolver seu trabalho com mais calma, pelo caminho, pelo verdadeiro caminho – que é você quebrando sua cabeça até achar o rumo. Então, saquei o Ataulfo como compositor brasileiro. Eu acho que ele é o mais popular, porque todo mundo canta Ataulfo. É difícil cantar Tom Jobim, mas Ataulfo não é. E todo mundo canta sem entender… Então, essa coisa me deu uma cutucada, no sentido de “Você é um compositor popular? Suas melodias ficarão? (cantando) “Meu coração / Não sei porque…” Eu não estou tocando nada, é a melodia, somente. Depende, se eu quiser harmonizar, harmonizo… Atonalizo. Não importa a harmonia, é a melodia que importa. Então, fui lá no Ataulfo quando falei, “Vou estudar”, “Vou deixar o itamarzinho assumpçãzinho um pouco e vou estudar”. Aí havia um projeto no MIS [n.e.Museu da Imagem e do Som], que é sempre novos, tal, e o Rennó, o Carlos Rennó, o poeta, tradutor e amigo, me convidou pra esse projeto que tinha o Luiz Melodia, Tom Zé, interpretando Geraldo Pereira, Jackson do Pandeiro, Adoniran Barbosa e Ataulfo. Minha primeira opção era gravar Adoniran, mas o Passoca também ia fazer… O Passoca tava mais nessa onda. Aí, falei, “Pô, uma boa oportunidade de conhecer Ataulfo”. Entrei na obra do cara e fiquei três anos da minha vidinha com Ataulfo na minha orelhinha. Daí, gravei 20 músicas de um universo de 50 que peguei. Falei assim, “Os caras que não conhecem isso vão ficar fazendo musiquinha. Eu não vou. Cê não conhece a obra dos caras, cê não sabe o que rola…” Então você vai fazer musiquinha achando que é campeão. Quando você começa a sacar que a cultura brasileira é complicadíssima, ela não está aqui na sua cara. Tem que correr atrás. Então, sei que há um público que está afinadíssimo com o meu trabalho, que caminha de uma outra forma. Mas tem muita gente que não gosta de abobrinhas e não tá a fim e acabou. E existe uma outra música que não é abobrinha. Hoje, como compositor, quero dizer, depois dessas aulas todas, porque cada um é mestre, é uma escola… Você pega Cartola, é uma escola. Você pega Milton Nascimento, é uma escola. Se eu fosse fazer Cartola, Milton, Melodia, são 3 anos pra cada um, onde vou parar? Não dá. Você vê o Milton cantando hoje, parece um cantor, mas se você pegar a obra dele, é aquela complicação. Então, numa boa, eu fui lá saber como é. Tocar “Milagre dos peixes”, esse negócio das cordas soltas…

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Sou poeta não! – Parte 19/26

Itamar – Então, tem uns negócios que você, que é brasileiro, inventa. Só no Brasil é possível uma música tão diversa… Aí dentro dessa – eu acho que é isso – você tem o intérprete, o compositor, o arranjador, o poeta, né? Porque há compositores que não são poetas, como Milton, que tem parceiros poetas como Fernando Brant, Ronaldo Bastos, e os compositores poetas como Caetano, Gil, Melodia, Chico Buarque, eu. Mas eu foi uma coisa que os poetas falaram, “Você é poeta!”. “Eu sou letrista”. “Não, você é poeta!” O Leminski e a Alice. Daí falavam, “Você é poeta não”. Agora me esclareceu, sou poeta não, mesmo. Não isso, não aquilo. Não assado, não cozido. E assim meus temas são os mais livres possíveis… Tem existencialismo, tem filosofia, tem… Eu não tenho compromisso se a bundinha vai mexer ou se não vai mexer, já tem gente demais pra isso. Tem pouca gente do outro lado. E aí a Ná, eu acho que é bem-vinda nesse sentido de uma compositora que depois de uma experiência muito rica como cantora, porque é afinadíssima – que a coisa é a braba -, partiu pra esse lado porque tem o dom. Não adianta você, só porque você canta, fazer música. Não vai dar certo. Dentro disso que eu estou dizendo, nunca você vai superar um Ataulfo. Vai ser medíocre. Então, dentro disso é melhor cantar somente… Porque que eu vou ficar tentando uma coisa que não vai dar certo? Não vou tentar ser Miles Davis, não vai dar certo. Vou ficar aqui fazendo meu sonzinho, tal. Então para umas coisas que você tem que tomar “semancol”. E aí, nesse caminho, vi a Ná entrar seriamente. Tem o Dante também, que pinta a triceria. Então, de repente eu escrevo, assim, entro como poeta. Mas com experiência de um compositor que cria melodias, harmonias e ritmos. Essa coisa de facilitar a vida. É fácil. Você vai tocar com o Hermeto. É fácil. Não precisa nem ensaiar.

Corre atrás aí que é você quem está atrasado – Parte 20/26

Itamar – E eu tô mais ou menos assim… Ultimamente, não estou querendo ensaiar. As músicas estão querendo me matar, “Olha, eu vou ensaiar uma vez só, hein? Daí não vou ensaiar mais. Vocês ensaiam, né?” Porque chega uma hora, não sei mesmo… Fui para o Rio de Janeiro na semana passada. Não sabia o que eu ia encontrar lá. Não adianta eu me preparar para… Meu trabalho é um trabalho que é assim. De repente, a pessoa ouviu “As próprias custas” só. E foi o que aconteceu. Cheguei lá, uma moçada que estava entrando em contato agora, que ouviu “As próprias custas” e veio me pedir pra tocar aquele repertório, de 10, 20 anos atrás. Eu não vou tocar isso, não. Você chegou atrasado aqui. Eu tô aqui no Pretobrás. Começa lá. Não, tudo bem, vai devagar, porque se não vou ter que atender pedidos e não vai dar certo. Corre atrás aí que é você quem está atrasado. E foi legal porque é isso, havia uma moçada lá que não tem uma divulgação maciça, mas tem um espaço. Brasil sério, vai lá, uma matéria legal, tal, Macalé. Então, essa coisa da minha geração, a Ná como compositora. Porque são poucas compositoras que surgem, em detrimento a tantas cantoras. São poucas compositoras, assim, nesse sentido de criar uma obra e a Ná eu acho que está caminhando pra isso. É aquela interpréte que tem a sua obra, compõe. Então tem aquela coisa, que nem quando ela foi pro festival. Acho bobagem, ela se desenvolveu fora, é óbvio que ela vai cantar pra cacete, qualquer coisa que vier ela vai cantar. Mas eu acho que eu gostaria de ver ela se apresentando, contratada pra se apresentar como Caetano, como Gil, porque ela já tem esse trabalho pra ser apresentado, como eu, como arrigo em qualquer lugar, então bobagem eu ir como intérprete no festival ou qualquer coisa do tipo. Não vou deixar meu negócio aqui por nada. Nesse sentido eu acho que você gasta muita energia com uma coisa que você já tá com seu trabalho. Mas ela tá acima de qualquer coisa, como a virginia rosa, que começou com a banda isca de polícia, primeiro trabalho dela, que teve que prestar muita atenção e hoje eu vejo com muito orgulho isso. De pertencer a essa geração. De ser amigos desses talentos, quer dizer, mas é uma coisa verdadeira, sincera.

O artista é um artista, acabou – Parte 21/26

Itamar – Quando eu tava entubado lá na UTI, que ia a Zélia Duncan, a Rita Lee, a Ná, aquilo pra mim era o verdadeiro, o sincero, independentemente do bagulho, o lado humano. Isso também vou desenvolver, longe das panelas, das obrigações, dos castelos, do status de ídolo e tal, fazer gênero. São coisas que eu aboli da minha vida, são penduricalhos. Isso atrapalha. O artista é um artista, acabou, não existe isso. Agora o “quero ficar milionário” não é artista. Você pode ganhar muito dinheiro, tudo bem. O Ataulfo ganhou, tinha um Cadillac. A Clementina tinha 60 anos, parou e foi cantar. Essa onda, essa coisa africana. Eu me dedico a isso, por isso que fui ver com seriedade se não era jogador de futebol, se era estudar. Porque acho bobagem, se você vai dar um ótimo médico, você pegar e fazer umas musiquinhas… Estuda matemática, química, física. Por que você vai entrar nessa área de música popular brasileira?

Chamam o Maluf de turco. Pô, o cara é libanês! – Parte 22/26

Itamar – Porque não adianta falar pra mim que tem um pop. Então pop vale tudo. Pop o que é? É pagode. É tudo pop. Que porra é essa? Mas eu não tô falando disso, eu tô falando da história. Mas a história está encoberta por uma nuvem que não é passageira, que faz tempo que está aí. Porque se fosse passageira não teria começado fora, até hoje mudou a linguagem da estrutura, então acho que é aí que eu vejo que se tem artistas com um futuro, os verdadeiros artistas brasileiros, mesmo. Aqueles que vêm com o dom, batalham, estudam, vão fundo… Porque se eu não cantar Arrigo eu não sou um compopsitor brasileiro? “Sou descendente de escravo”. E daí, meu filho, tenho alguma coisa com isso? Tem uma coisa assim, mesmo racismo. Racismo como? Se brasileiro é somente uma raça, porque estão falando que preto é uma raça? Não estou entendendo. E o branco, é outra aqui no Brasil? E os índios ficam aonde? Os sírio-libaneses, os turcos… Eles chamam o Maluf de turco. Pô, o cara não é, o cara é libanês. Então é complicado chamar os caras de turco, uma cultura totalmente diferente. Quero dizer, esses caras não conhecem cultura. Aqui não tem árabe e palestino pra ficarem falando de racismo. O alemão e o francês não se dão. São brancos, que se entendem, mas vizinhos, outra cultura, outra língua. Os pretos ficaram 300 anos em escravidão, e você vem falar de racismo pra preto? Se você fala a mesma língua, se é um país que somente fala português, se não há outra cultura. O judeu que eu conheço, cultura de judeu, o cara que sabe ganhar dinheiro, né? [risos] Candomblé, como é que pode? É no Brasil, meu filho, não é uma mistura somente genética. É uma mistura mesmo no Brasil. Então, há muitos brancos que não têm referência da Europa, têm mais referência da África, muitos brancos se manifestando como pretos. Por que tem essa identidade, esse sentimento… O alemão analisa pela razão, a gente é emoção, é passional pra caramba. Então, essa coisa do Brasil, porque tem muito subterfúgio na coisa…

Fui operado 3 vezes em 20 dias – Parte 23/26

Itamar – Desde que eu me conheço por gente, que o Itamar Assumpção tá lá naquela, é maldito. Bom, esse maldito quer dizer o quê: livre. Roberto Carlos não é livre. É maldito quem é livre. Não fazer isso mesmo, não vai entrar a minha doença na roda. Fui operado 3 vezes em 20 dias, agora que eu tô falando sobre isso. Isso não interessa pra ninguém. Eu posso falar. Agora, quando você é obrigado a usar isso també, a doença como marketing. Uma infinidade de valores importantíssimos que caiu na roda e tudo bem, não se sabe mais o que é marketing, mas tudo é marketing. Não tem a sinceridade do bagulho, não tem como você ser sincero, tal, porque se você vender um milhão de discos já está bom. Eu não tenho essa obrigação. Se eu não quiser gravar amanhã, eu não gravo amanhã. Se eu quiser gravar ano que vem… Agora vou fazer um disco com o Naná, isso é outro papo, não tô preocupado. Então, dentro desse caminho que é paulista, paulistano por excelência, eu vejo que a Ná está chegando ao nível das Elis Reginas e etc.

Os homens vão passar e me prender! – Parte 24/26

[ Carro com auto-falantes passa vendendo pamonhas]

Itamar – Isso é direto, os caras detonam…
Rogério – É carro do quê?
Max Eluard – Acho que é pamonha.
Itamar – Tem pamonha, sorvete…
Rogério – É pamonha.
Itamar – Mas esse tem sorvete, também. Esse cara vende 10 sorvetes por 1 real.
Max Eluard – Esse barulho é uma ditadura, pô.
Itamar – É a minha posição. São Paulo te impõem tudo. O vizinho bota lixo ali no canto, no meu muro e não está nem aí. Eu tive que pixar meu muro uma vez. Um dia carpi a calçada e ficou lá a grama e minha mulher resolveu botar fogo, num domingo de manhã. E a vizinha vem e fala, “Vai dar ‘pobrema’”. Eu, “Não, tudo bem, qual é o problema?” E eu lá, solidário. Passou um tempinho e chegou um fiscal da prefeitura, “Olha, você botou fogo…” Eu fiquei puto! O cara veio me falar um monte. “Os vizinhos mandaram você aqui, né?” Mas por que a prefeitura não veio carpir? Eu tive que carpir, né? E a calçada não é minha. A prefeitura não passa aqui, só vem encher meu saco. E vem a outra, “Eu avisei que ia dar ‘pobrema’…”. Eu fui pra Penha, comprei um spray preto e pixei no muro amarelão, em preto, “Alô, alô vizinhança! O negócio é o seguinte, é cuidar da cabeça e das criança! E falei da fumaça… Não lembro direito… Uma coisa assim, “A vida passa tal qual fumaça…” Um recado direto pra quem foi chamar o fiscal. E teve que ler isso todo dia no meu muro. Não fui eu que arrumei o pepino. E ainda falei pra minha mulher, “Fica lá fora comigo que os homens vão passar lá e me prender porque estou pixando o muro”. [risos] Assim que eu terminei assinei, “Assinado, o Poeta da Penha de França”. Aí passou uma baratinha [n.e. Como eram conhecidas as viaturas de polícia nas décadas de 70 e 80] e parou. Daí fui lendo pro policial não tropeçar nas palavras. [risos] E disse, “Esse muro é meu”. Ainda bem que minha mulher estava lá, senão iam me levar por pixar meu muro. Então, eu convivo, eu entendo, eu tolero, eu não fico enchendo o saco do outro. Eu tenho mais coisa pra fazer. Mas, se pega no meu pé eu respondo. Eu não tenho a obrigação de ficar sendo simpático com essa falta de educação, essa falta de cultura, de convivência, com essa coisa de achar que neguinho é dono! Pra cima de moi, não. Quando mexem comigo na rua… Tem uns malucos que mexem comigo na rua! Mas eu faço um escândalo!
Max Eluard – Mexem como?
Rogério – A vizinhança?
Itamar – Não. Na rua, na Penha, eu ando muito pela rua. Fazem assim, “Nossa! Olha o cabelo dele, que muito loco!” [risos] Eu viro de repente e ponho a língua pra fora, deste tamanho. Na hora o sujeito fica de cara. “Você é louco?” “Sou mais louco que você. Pronto, acabou.” Não mexo com ninguém na rua, pô! Mas é tudo numa boa. O pessoal gosta de mim. Sou um chato de galochas, mas o pessoal gosta. [risos] Mas acho que gosta da minha sinceridade. Pra ser artista não precisa de historinha. Depois que os vizinhos passaram a me ver na televisão, a saber do meu trabalho, a coisa mudou da água pro vinho.

Quem tá aí com Jackson do Pandeiro? – Parte 25/26

Itamar – Mas sobre a Ná, o que eu tinha pra dizer é essa abobrinhada toda. Aí eu vejo como ela gravou Rita Lee, volta àquela questão do Itamar gravando Ataulfo. Quero dizer, um compositor-cantor interpreta um compositor-cantor da MPB, ou um compositor sei lá, uma obra. Ela está preparadíssima pra isso, porque não venha com a abobrinha de botar uma cantora cantando Ataulfo pra mim que vai ser aquela mesmice, aqueles mesmos arranjos. Então, Ataulfo não está precisando de neguinho ficar em cima dele. Pra quê? Então, tem uma coisa assim: você coloca a importância da obra dentro do respeito com a outra obra e da capacidade de interpretar outra obra. Eu acho que é aí que entra alguém como a Ná, que vem sempre muito séria, que está capacitada mesmo. Aquilo que eu disse, se você não entende a história e se acha campeão, então pra que ela iria interpretar? Ela iria compor pra sempre e esquecer. Então tem esse lado nosso de intérprete de obras que não são possíveis de ser interpretadas modernamente. Não adianta eu pegar Lupicínio e ficar tocando Lupicínio pra vender uns dois disquinhos. Ou eu pego a obra do Lupicínio e mostro quem é o Lupicínio hoje, com uma linguagem de hoje, sem tocar na linguagem do Lupicínio… É isso que eu fiz com Ataulfo. Eu aprendi isso. Eu posso harmonizar Ataulfo, posso fazer jazz, posso fazer… Não interessa, mas a melodia, uma nota eu não troquei. Por quê? Porque se você tirar tudo aquilo que está junto no disco, fica a melodia dele lá. Não importa o que está junto. Não importa aquele monte de coisa que está junto, inclusive eu cantando. Se tirar tudo, vai ficar a melodia do Ataulfo. E isso tem que ser respeitado. Eu acho que essa coisa dela gravar samba-canção, um gênero… É um gênero como é o samba, como é o rock, como é o reggae, como é o funk, como é o baião, como é o xote. Essa coisa do samba-canção é um caminho pra pouca gente, não dá pra ficar se metendo nessa linguagem sem o conhecimento do bagulho. Então eu acho isso. É importante pra essa obra quando uma artista como a Ná Ozzetti resolvre gravar, porque a obra no Brasil é muito… Quem tá aí com Jackson do Pandeiro? Então, é imprescindível pra gente – nós, artistas – trabalhar também, conhecer Noel, gravar Noel, conhecer Macalé e gravar Macalé. Há uma exigência, uma escola braba, não tô falando de Itamar. Eu passaria minha vida inteira somente nessa, não precisa do Itamar compondo.

Aconteceu comigo na Alemanha – 26/26

Itamar – Eu consegui ver isso, que eu posso contribuir livremente, me entregar livremente a uma interpretação de uma obra sem estar vinculado a nenhum pretexto. Então, nesse sentido, ninguém melhor que a Ná, que tem essa coisa desenvolvidíssima. E que é muito importante pra quem vai ouvir hoje. A Alzira gravando Maysa… Quero dizer, são compositoras que aprenderam sobre a história desses personagens. A Maysa também era maldita da época. Tem um lance legal da Maysa no Japão. O japonês apresentou, ”Essa sambista do Brasil”. “Não, não… Olha, eu quero esclarecer, eu não sou sambista.” Essa coisa de sempre estar preocupado com a sua linguagem e não com estereótipos. Aconteceu comigo na Alemanha. Cheguei lá prum show, com a banda. O palco já estava montado, “Itamar Assumpção, São Paulo – Brasil. 100 anos de abolição da escravatura no Brasil”. E o pessoal, “Samba, samba!” E logo comigo! E eu não ia interpretar Ataulfo, nem Paulinho da Viola, nem Martinho da Vila. Estava interpretando eu mesmo. Então, samba não ia rolar. Fudeu! Os caras começaram um burburinho. Desci do palco, cantei na orelha de um, de outro. Acabou, eu não entendi nada, todo mundo falando. Estava meio desanimado, porque meus shows são sempre no silêncio. Mas depois da quarta música pararam e foi assim até o fim. No camarim chegaram uns alemães, “Disco, disco”. Pedindo disco. Tinha um alemão comigo que não estava entendendo. Ele explicou, “Alemão não é assim, não vai te aceitando de cara. O que você fez, de descer do palco, alemão odeia! Mas comigo não teve essa. E eles me aceitaram.

Matéria original no site Gafieiras

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